QUEM SÃO OS SALAFIS - PARTE 1

 QUEM SÃO OS SALAFIS? – Parte 1.


Por: R. Hussein



Hoje em dia a palavra salafi é usada em 2 extremos, ou é usada pelos xiitas para denegrir os muçulmanos mais conservadores, usando também a palavra wahabi para denegrir os mesmos sem ao menos conhecer as diferenças entre os dois; bem como a palavra também é usada pelos conservadores para se auto-afirmarem como verdadeiros seguidores do antigo islamismo. Porém o salafismo é um movimento que surge no final do século XIX, mas que tem origens dentro do tradicionalismo islâmico anterior, existente já desde a segunda metade da Idade Média.

Os árabes, em sua maioria, sempre foram mais apegados a uma forma mais pura da religião islâmica, isso quer dizer, sem muita influência externa, apenas no final do Califado Omíada que foi surgindo entre os árabes o mutazilismo, que misturava filosofia grega a religião islâmica. O Califado Omíada ainda era um governo árabe, que presava para que as instituições governamentais fossem lideradas por árabes, mesmo já havendo conversos entre aqueles que eram chamados de mawalis (não-árabes muçulmanos). Na segunda metade do século VIII um grande número de povos túrquicos e persas estavam cada vez mais entrando na religião islâmica, e esses a adotavam as sincretizando com suas crenças antigas, e assim no futuro os povos descendentes desses, em sua maioria, se tornariam sufis ou muito místicos. E para complicar, quando os abássidas ascendem ao poder no ano 750 e mudam o centro político para Bagdá em 762, eles começam a empregar muitos mawalis em seu governo, isso não apenas devido a proximidade de Bagdá com terras persas e túrquicas, mas até pelas origens do movimento abássida, que apesar de serem árabes, o movimento começa com um grande número de persas em seu seio.

Até por isso, o real poder dos califas árabes não vai durar muito tempo, rapidamente os persas buyidas tomam o poder em 945 [1] fazendo do califa árabe um fantoche, e com a derrota destes em 1029, pouco depois, em 1045 o califa abássida viu seu império cair diante dos turcos seljúcidas e foi obrigado a fazer um pacto com esses casando-se com a filha do irmão do sultão seljúcida em 1053, e ficando sob a tutela dos turcos, e mais uma vez o califa se tornou um fantoche. A situação ficaria assim até 1118, quando o sultão seljúcida Muhammad I Tapar morre, e daí o império seljúcida se divide, e o califa consegue controlar o filho de Tapar, Mahmud II, fazendo desse o seu fantoche e virando o jogo, mesmo ainda tendo conflitos com outros membros da dinastia. Mas mesmo nesse momento que os árabes reassumem o controle, os territórios de influência dos abássidas havia diminuído drasticamente, controlando apenas Bagdá e regiões adjacentes, a Síria já estava nas mãos dos aiúbidas, Mossul estava nas mãos dos zengidas, o sul do Iraque [e atual Kuwait] estavam nas mãos dos seljúcidas ainda, além de não controlarem nenhuma terra mawali. E além de tudo isso, agora sua sociedade já era uma mescla de povos, seu exército era lotado de mawalis, então não teve como ficar sem empregar esses no governo ainda.

Assim, em meados do século XIII, pouquíssimas terras árabes eram controladas por árabes, e as poucas que eram, como o Marrocos, a Andaluzia, o Iêmen, e Omã, eram controlados ou por pessoas de outras seitas (como xiitas e ibadistas) ou por sunitas bem místicos. Os tradicionalistas eram bem poucos, ou eram beduínos ou pessoas que viviam em centros urbanos afastados de suas capitais. Mas nesse século começa um reavivamento do tradicionalismo na pessoa de um sheik muito conhecido na história islâmica, Ibn Taymiyyah (1263 – 1328).

O primeiro tradicionalista a lutar contra o favoritismo de crenças sincréticas no islam foi o Imam Ahmad ibn Hanbal (778 – 855), que pregava contra o mutazilismo favorecido pelo governo central de Bagdá. Ibn Hanbal fundou a escola de jurisprudência hanbali [2] e deu seu nome a escola de crença tradicionalista athari [3], mesmo essa já existindo, pois como sua pregação era tão importante, acabou recebendo seu nome. Porém, como já colocado, o favorecimento dos mawalis posteriormente acabou fazendo com que outras escolas e pensamentos sobrepusessem os tradicionalistas.

Ibn Taymiyyah nasceu no sul da Anatólia controlada pelos seljúcidas [turcos] em 1263, sendo ele já nascido numa família tradicionalista, seu pai, Sahib al-Din (1230 – 1284) e seu avô Majd al-Din (1194 – 1255), já eram importantes teólogos hanbalis que viviam na região, porém com a invasão mongol sua família decide imigrar para Damasco em 1269, e sua cidade natal, Harran, seria completamente destruída pelos mongóis logo após sua saída. Em Damasco ibn Taymiyyah começou sua educação e formação hanbali, a concluindo em 1282. Em 1284 ele assume como líder da madrassa local e dez anos depois ele escreve seu primeiro livro, que continha os rituais do hajj, após seu primeiro hajj, e nesse livro ele já começa a criticar e condenar as inovações religiosas [ritos sincréticos] no hajj feito por outras seitas. A partir daí ele começa a escrever muitos livros contra as inovações das seitas, até por causa de sua proximidade com os xiitas alauítas, que viviam nas montanhas sírias, e que ele a criticava muito. Em 1301 ibn Taymiyyah ganha os favores do governador local, e suas crenças tradicionalistas começam a se espalhar, e muitos árabes locais começam a voltar para o tradicionalismo.

Ibn Taymiyyah é o primeiro a usar em suas obras o termo salafi, usando essa palavra para descrever aqueles que seguiam os hadiths deixado pelo profeta (saws), pelos sahabis (os companheiros do profeta), pelos tabi'un (os filhos e companheiros dos sahabis), e pelos tab tabi'un (os filhos e companheiros dos tabi'un). A palavra salafi significa “ancestral”, ou seja, os salafis eram aqueles que seguiam os ancestrais dos atuais muçulmanos, ou seja, as primeiras gerações de muçulmanos. Mas nem no tempo de ibn Taymiyyah, e nem nos séculos seguintes, nenhum muçulmano, mesmo tradicionalista, usaria essa palavra para designar a si próprio, ou seja, o salafismo ainda não existia como movimento, porém, o tradicionalismo sobreviveu e cresceu nas cidades egípcias e sírias graças a ibn Taymiyyah e seus trabalhos. E na próxima parte vamos entender o que aconteceu para o salafismo se tornar um movimento.


NOTAS:

[1] http://estudosislamicos.blogspot.com/2017/06/a-dinastia-buyida.html

[2] http://estudosislamicos.blogspot.com/2018/08/imam-ahmad-ibn-hanbal.html

[3] http://estudosislamicos.blogspot.com/2019/02/a-escola-de-teologia-athari.html

Para maior informação sobre o afastamento dos árabes da política medieval, vide: The History of Saudi Arabia, por Wayne H. Bowen (2007), Capítulo 4.

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