QUEM SÃO OS REAIS BATINIS?

 Por: Rafael Hussein



A série turca Uyanış: Büyük Selçuklu (traduzida para o português como O Grande Seljúcida [1]) que estreou em 2020 se passa no ano de 1090, uma importante época para a História Medieval pois está dentro dos antecedentes para as Cruzadas na qual o Papa Urbano II convocaria em 1095. A série conta a história dos sucessores de Alp Arslan (1030 – 1072), principalmente do Sultão Melikshah I (1055 – 1092) [2] que foram importantes sultões do Grande Império Seljúcida [3]. E dentre os inimigos do sultão na série, ao lado dos bizantinos e rebeldes da Anatólia, estão os chamados Batinis, homens que usavam preto quase o tempo todo, vivem nas periferias e lutavam com espadas. Mas na história, quem eram os Batinis?
A palavra Batiniyya em árabe significa “oculto ou escondido”, e no caso da historiografia islâmica se refere a todas as seitas ou ordens sufis que acreditam que o Alcorão tem 2 aspectos, um aparente (zahir) e outro oculto (batin), e que o aspecto oculto só pode ser interpretado pelo seu líder, seja o Imam (no caso dos xiitas), seja o Sheik (no caso dos sufis).

Assim sendo, em suma os batinis não eram um grupo ou uma seita, e sim uma designação para todas as seitas e grupos que tinham esse tipo de crença. Basicamente os xiitas tem essa crença, bem como a ordem sufi bektashi (que tem influência xiita). Dos grupos xiitas que mais dão enfase nessa crença podemos destacar os ismaelitas nizaris, bohras e druzos [4], porém até mesmo os xiitas itnan-arsharyya (maioria no Irã e Iraque hoje) acreditam, em menor grau, nesse tipo de crença. Mas apesar da palavra ser usada pela grande maioria dos estudiosos assim, o sábio sufi Abu Hamid al-Ghazali (1058 – 1111) usou a palavra para designar apenas os xiitas ismaelitas. Por que isso aconteceu?

Na época que al-Ghazali viveu o Califado Fatimida do Egito, que era ismaelita, estava em seu auge, por isso a propagação da mensagem (dawah) ismaelita estava muito forte, e com isso o ismaelismo crescia muito, principalmente na Síria e na Pérsia. Com isso outros movimentos xiitas enfraqueceram, tanto que vários deixavam essas outras seitas xiitas para se tornarem ismaelitas, o mais famoso caso disso foi com o Velho da Montanha, Hassan Sabbah (1050 – 1124), que nascera itnan-arsharyya e se tornou ismaelita através de um Dai (propagador) ismaelita muito importante, Abdul-Malik ibn Attash (ambos aparecem na série). Mas quem eram os ismaelitas?

O ismaelismo é uma seita do Xiismo Ortodoxo [5] surgida após uma cisão na época do sexto imam do xiismo, Jaffar al-Sadiq (702 – 765). O xiismo é uma das seitas do islam surgida algum tempo após a morte do profeta Muhammad em 632 [6], onde aqueles que apoiavam o primo e genro de Muhammad, Ali, deveria ser seu sucessor, e após esse apenas descendentes de Muhammad e Ali poderiam liderar a comunidade muçulmana. Jaffar al-Sadiq era tetraneto de Muhammad. Jaffar nomeou como seu sucessor na liderança da comunidade xiita seu filho Ismail (719 – 762), porém esse morreu pouco antes de seu pai, daí Jaffar nomeou seu outro filho, Musa (745 – 799) como seu sucessor. Após a morte de Jaffar a maioria aceitou Musa como líder, porém alguns poucos xiitas acreditaram que quem deveria liderar a comunidade era Muhammad, o filho de Ismail, pois a liderança sempre devia ficar com os filhos mais velhos daquele que era o filho mais velho. Os que seguiram o filho de Ismail ficaram conhecidos como ismaelitas.

Em 909 o Imam dos ismaelitas, Abdullah al-Mahdi (873 – 934) fundou na região da atual Tunísia o Califado Fatimída. O quarto califa dessa dinastia, al-Muizz (931 – 975) conquistou o Egito em 969 e ali mandou construir sua nova capital, o Cairo. Para os ismaelitas o califa fatimida era o imam, ou seja, na época em que se passa a série (1090) o Imam era al-Mustansir (1029 – 1094), e apenas ele podia entender os significados ocultos do Alcorão, como falamos acima. O ismaelismo existe até os dias de hoje dividido em várias seitas, sendo as mais conhecidas os Nizaris (comuns no Paquistão e Afeganistão) e os Bohras (comuns na Índia).
Assim, concluímos que, Batinis não eram um grupo, mas todos que acreditavam nos dois aspectos do Alcorão, porém na época em que a série se passa, esse nome era aplicado aos xiitas ismaelitas devido a força que esses ganhavam com novas conversões através da propagação de sua mensagem. A força era tanta que Nizam ul-Mulk (1018 – 1092) chegou a patrocinar várias escolas de ensino do islamismo sunita pelo mundo muçulmano chamadas
Madrassa Nizametyyah (Escolas de Nizam) para combater o avanço dessa mensagem, sendo a mais famosa dessas a Escola de Bagdá, onde al-Ghazali deu aulas.


NOTAS:


[1] Essa não é a tradução literal porém é a que os brasileiros que traduzem a série amadoramente trouxeram.

[2] Para quem quiser saber mais sobre os personagens veja: http://estudosislamicos.blogspot.com/2020/10/personagesn-reais-de-uyanis-buyuk.html

[3] Não confundir com o Sultanato Seljúcida de Rum, no qual seu segundo Sultão, Kutalmish, é mencionado na série.

[4] http://estudosislamicos.blogspot.com/2019/03/quem-sao-os-dawoodi-bohras.html

[5] Xiitas ortodoxos são aqueles que acreditam que seus Imam's tem tanto o aspécto humano como o divino, não aceitam que os Imam's são Deus nem dão divindade a eles, porém os vêem como primogênitos da criação bem como os dão aspectos divinos (grande sabedoria, poderes sobrenaturais, senhorio sobre outras coisas, etc). Ainda existem os xiitas extremistas (ghulat) que são aqueles que acreditam que os Imam's são a própria encarnação de Deus, e os xiitas heterodoxos, que acreditam que os Imam's eram totalmente humanos. Exemplo de Ortodoxos: Itnan-Arsharyya. Exemplo de Extremistas: Alauítas. Exemplo de heterodoxos: Zaiditas.

[6] http://estudosislamicos.blogspot.com/2020/11/historia-do-xiismo-parte-1.html

Artigo baseado nos livros:


DAFTARY, Fahad. The Ismailis: Their History and Doctrines. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

MOOSA, Matti. Extremist Shiites: The Ghulat Sects. Siracusa: Syracuse University Press, 1987.

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