HISTÓRIA DO XIISMO – PARTE 1

 Por R. "Hussein".

Introdução

Hoje começo aqui uma nova série contando um pouco da história da maior seita heterodoxa do islamismo, o xiismo. Pode ser que no futuro essa série de textos venham a se tornar um livro ou livreto a parte, porém nesse momento apenas publicarei os textos por aqui. Essa série de textos vem coincidir com dois trabalhos que estou quase terminando, meu livro sobre o Califado Rashidun, e a tradução do livro sobre as seitas xiitas extremistas de M. Moosa, e devido a isso eu usarei muitos dos textos que usei na construção de meu livro aqui, além de citações do livro de Moosa.

Pois bem, já existem trabalhos interessantes sobre a história do xiismo em português, mas além do fato de serem textos doutrinários, a grande maioria, senão todos (desconheço textos que vão além), falam apenas do tempo dos 12 Imam's, apenas o trabalho de Hourani fazendo uma pequena citação sobre o Sheik al-Mufid (948 – 1022) [1] que teria vivido um pouco mais adiante, e trabalhos que falam do século XX em referência a Revolução Iraniana de 1979, porém fica essa lacuna de mais de 900 anos sem qualquer referencial histórico. Aqui vamos tentar cobrir essa lacuna, porém começaremos a história desde seu início, e tentaremos chegar até os dias atuais, não apenas falando somente do xiismo duodecimano, mas tentaremos cobrir outras diversas seitas que surgiram do xiismo como os zaiditas, ismaelitas, mahdavias, druzos, alauítas, alevitas, etc.


Ghadir Khum

Todo e qualquer xiita é rápido ao afirmar que o Profeta Muhammad (saws) apontou Ali (ra) diretamente como seu sucessor num evento chamado Ghadir Khum. As tradições xiitas dizem que após sua última peregrinação, na metade do caminho de volta de Meca para Medina, o Profeta (saws) parou o grupo que estava com ele, levantou a mão de Ali (ra) e disse: “Para quem eu sou mawla, Ali agora é mawla”. Existem vários motivos históricos para não se acreditar nesse acontecimento, desde problemas semânticos da palavra “mawla” até inconsistências da própria história, além da falta de citações em livros de tal acontecimento. Porém essa é a crença dos xiitas, e não estamos aqui para discutir uma crença, fato é que, a palavra Shia (partidário, que dá origem ao termo xiita), apesar de aparecer no Alcorão, ela não foi usada para designar qualquer grupo até a época do califa Ali ibn Abu Tallib (601 – 661).

Após a morte do Profeta Muhammad (saws) houveram pessoas que acreditavam que a sucessão deveria recair sobre Ali (ra), o mais notório deles foi o ex-companheiro de Muhammad (saws) chamado Ammar ibn Yasir (ra) a defender essa tese [2], porém o próprio Ali (ra) acabou dando seu apoio ao primeiro califa, Abu Bakr. Assim sendo nossa história vai começar na época do terceiro califa, Uthman ibn Affan (573 – 656).


A Raiz: Os Sabaiyyah


[Parte de meu livro sobre o Califado Rashidun]

Entramos agora num dos períodos mais obscuros da história islâmica. Dentro da nobreza do estado islâmico começaram a se circular notícias e rumores sobre o califa Uthman, sendo a principal acusação de que o mesmo cometia o que hoje é chamado de nepotismo, ou seja, ele escolhia mal seus governantes e juízes ao indicar pessoas de sua família e tribo para esses cargos, e outras acusações como corrupção e mal gasto do dinheiro público. Assim no ano de 654, Uthman chamou todos os seus doze governadores provinciais para Medina, a capital dos muçulmanos, para discutir o sobre as queixas do povo e sobre esses rumores. Durante este conselho de Governadores, Uthman ordenou que todas as resoluções do conselho fossem adotadas de acordo com as circunstâncias de cada região.

Mais tarde, nesse Majlis al-Shurah (Conselho de Ministros), foi sugerido a Uthman que agentes confiáveis fossem enviados a suas províncias para tentar determinar a fonte do descontentamento. Uthman enviou Muhammad ibn Maslamah para Kufah, Usama ibn Zayd para Basra, Amr ibn Yasir para o Egito e Abdullah ibn Umar para a Síria. Os agentes enviados a Kufa, Basra e Síria relataram que tudo estava bem, as pessoas estavam satisfeitas com o governo, embora algumas pessoas tivessem pequenas queixas pessoais. Amr ibn Yasir, o emissário do Egito, no entanto, não retornou a Medina. Os principais rebeldes com o governo estavam no Egito [8].

Esses rebeldes eram liderados por um homem tão obscuro quanto esse momento, chamado Abdullah ibn Sabah. Alguns historiadores xiitas, modernos e antigos, relatam que Ibn Sabah não existiu, baseando-se na ideia que foi uma montagem de propaganda feita por um homem chamado Sayf ibn Umar, que estava ligado aos governantes árabes para atacar os xiitas, porém muitas fontes relatam sua existência, mesmo fontes xiitas, e no caso fontes que nada tem a ver com Sayf ibn Umar ou que foram narradas por ele, que ainda assim relatam sua existência. Citamos aqui uma narração de Jaffar as-Sadeq, considerado o sexto imam para os xiitas falando sobre Ibn Sabah: “Que a maldição de Allah esteja sobre Abdullah ibn Sabah, que reivindicou o senhorio a Ali, e eu juro por Allah, Ali obedeceu a Allah, que possa haver destruição sobre quem [deles] estiver entre nós. Em verdade, haverá um grupo que dirá coisas sobre nós que não dizemos sobre nós mesmos, somos livres para eles, somos livres deles” (Rijal Kashee, pág. 107, n. 172).

Outra narração autêntica que nos mostra a existência de ibn Sabah está no livro ‘Al-Seerah’ (A Vida do Profeta) de Abu Ishaq al-Fizari, que diz: “De 'Tuq Al-Hamamh' por Yahya bin Hamzah Al-Zobaydi sob a autoridade de bin Ghaflah Al-Jo'fi Al-Kufi, que disse que ele se encontrou com Ali (ra) e disse: 'Eu passei por alguns homens e entre eles estava Abdallah Ibn Sabah, que estava falando negativamente sobre Abu Bakr e Omar, dizendo que você [Ali] nutre os mesmos sentimentos em relação a eles.' Ali respondeu: 'O que este pobre negro [de acordo com essa narração a mãe de Ibn Saba era etíope] quer? [Ali] então disse: “Eu procuro refúgio em Allah, mantendo nada menos um belo respeito por ambos”. Então ele mandou [guardas] atrás de Ibn Saba e o exilou para Al-Mada'in (antiga capital do império persa) e subiu ao púlpito ante o povo reunido, ele então elogiou Abu Bakr e Omar, então [Ali] disse: 'Se chegar a mim para que alguém me prefira a eles, então eu os açoitarei como fazem com o mentiroso caluniador.” Note que nenhum desses narrados passa por Sayf ibn Umar.

Não se sabe exatamente quem foi Abdullah ibn Sabah, as principais fontes colocam ele como um judeu converso ao islam natural do Iêmen, porém alguns historiadores discordam disso afirmado que ele foi colocado como judeu para tentar afirmar que os judeus tentaram destruir o islam, criando uma forma de anti-judaísmo na religião islâmica. Mas mesmo desconhecendo suas origens fica claro seu papel na liderança do grupo de rebeldes, mas ainda assim não podemos afirmar que a idéia de que Ali se tornasse o califa veio dele, pois como dito, não sabemos quase nada de sua origem anterior a esses eventos, porém podemos afirmar que, nesse momento esse grupo, chamado pelos historiadores árabes de 'sabaiyyah', ou seja, os seguidores de Sabah, foram o núcleo inicial do que viria a ser o xiismo [3]. Mas por que afirmamos que os seguidores de Ibn Sabah foram a raiz do xiismo?

A palavra xiita ou xiismo vem do árabe “shiat Ali” ou seja, “partidários de Ali”, porém ela ainda não era usada nesse momento, só passaria a ser usada no início do califado de Ali, pois aqueles que o defendia como califa eram seus 'shiat' ou seja, seus apoiadores, aqueles que tomaram partido de Ali, contra aqueles que tomaram partido de Muawyah. Após o assassinato de Ali, os que apoiaram que a descendência de Ali deveriam ser os califas continuaram a usar o termo 'shiat' para si, porém com o tempo esses xiitas introduziriam novas crenças para si, principalmente durante o início do califado abássida e no fatimída. Mas se historicamente o xiismo começa com esses apoiadores de Ali (já mencionamos no capítulo 1 sobre a questão religiosa) voltamos a nossa pergunta, por que então colocamos que os sabaiyyah eram o grupo inicial?

Até esse momento histórico é colocado pelos autores iniciais muçulmanos, como Ibn Hisham (m. 833), Muhammad at-Tabari (839–923) e Ibn Khatir (1300–1373), que ninguém defendeu a idéia de que Ali deveria ser o califa, apenas alguns historiadores xiitas colocavam que Amr ibn Yasir defendia essa questão, porém não queremos desconsiderar as fontes xiitas, nos levando a crer que mesmo se Ibn Yasir defendia esse ponto, ele nunca colocou um grupo de pessoas durante os 2 primeiros califas pregando isso, assim os primeiros a pregarem isso foram os sabaiyyah.

É muito interessante notar, incluso que, alguns autores acreditam que o próprio Amr ibn Yasir era Abdullah ibn Sabah, fazendo uma clara acepção sobre o 'kunyah' (uma espécie de apelido dado as pessoas na tradição árabe) de Ibn Yasir que era Ibn al-Sawda, ou seja, “filho da negra”, em referencia a sua mãe, Sumaya, a primeira mártir do islam, que era negra, pois esse também era o kunyah de Ibn Sabah, levando autores a considerar se tratar da mesma pessoa, e claro, julgando sobre as pregações de ambos de que o califa deveria ser Ali [4].

Enfim, a reivindicação dos rebeldes era clara, Uthman deveria ser deposto, e em seu lugar Ali, o primo e genro do profeta Muhammad, deveria assumir seu lugar como califa. Amr ibn Yasin, que como já mencionamos acreditava que desde a morte de Muhammad que Ali deveria ser o califa, que ao ver essa reivindicação dos rebeldes acabou tomando sua posição e se aliando a eles. Só havia um problema nisso tudo, Ali apoiava Uthman como califa, e o defendia contra todas as acusações [5].

Apesar de que nós não podemos exagerar no papel de Ibn Sabah na revolta contra Uthman e coloca-lo como o líder e ideólogo do movimento, ele começou a ganhar destaque na revolta assim que a mesma começará, porém não sabemos se ele iniciou essa revolta. O sheik líbio as-Sallabi menciona em sua biografia do califa Uthman que Ibn Sabah começou a pregar o retorno do profeta Muhammad bem como que Ali era o wasi (literalmente 'herdeiro') de Muhammad, e por isso ele deveria ser o califa por direito. Note aqui que, em nenhum momento ele disse que em algum momento em vida Muhammad falou diretamente que Ali deveria ser seu sucessor, fazendo-nos acreditar que o evento de Ghaddir Khum nunca aconteceu, Ibn Sabah apenas fez analogias baseados no Alcorão e no conhecimento deixado por Muhammad a fim de derrubar o califa, pelo menos nesse primeiro momento.

A partir de então essa mensagem começou a se propagar no mundo muçulmano, quando os agentes de Ibn Sabah começaram a enviar cartas para as lideranças de clãs e religiosos de várias outras regiões, até mesmo enviaram para Medina, fazendo com que as mesmas chegassem as mãos do califa. Ibn Sabah tentava mostrar as pessoas que havia uma rixa entre Uthman e Ali bem como tentava ao mesmo tempo incitar, principalmente o povo de Kufah a se rebelar contra seus governantes.

Em árabe dá se o nome a esse período de Primeira Fitna, a palavra fitna significa “divisão” e no caso o nome é dado quando muçulmanos tentam dividir os muçulmanos entre grupos ou mesmo seitas, e isso é considerado um pecado dentro da religião islâmica. No ano de 655 a maioria dos homens de Kufah estavam lutando em guerras nos seus mais variados frontes, e por isso Ibn Sabah arquitetou um plano final para derrubada de Uthman naquele ano. Em sua casa em Kufah o líder local dos rebeldes, Yazid ibn Qays, começou a incitar os habitantes a derrubar o califa, e nessa época se juntou a eles um nome importante nessa luta, Ashtar al-Nakha'i, que depois teria muita importância no futuro da fitna. Em um determinado momento ibn Qays e seus cerca de mil de seus seguidores na cidade conseguiram impedir que o governador Saed, que retornava de uma campanha, entrasse na cidade.

No ano seguinte, 656, os rebeldes se organizaram em seus três principais pontos, Egito, Kufah e Basra, e começaram a marchar em direção a Medina junto com os peregrinos que iam para o hajj, a fim de deporem o califa [6]. Entre esses rebeldes estava Abdullah ibn Sabah. As-Sallabi diz que ibn Sabah liderava o grupo, porém não se sabe ao certo a posição de ibn Sabah nesse momento, se ele apenas instigava os rebeldes ou se também os liderava. A notícia da vinda dos rebeldes chegou a Uthman quando eles já estavam numa vila nas periferias de Medina, e só aí ele pode enviar uma carta a Muawyah pedindo ajuda, porém ele ainda conseguiu a jogada de mestre de colocar Ali para negociar com os rebeldes, que após algumas conversas, fez com que alguns rebeldes voltassem para suas terras, e isso fez com que ibn Sabah se revoltasse ainda mais. Os que retornavam para o Egito acabaram sendo enganado por uma falsa carta que um mensageiro trazia dizendo que Uthman iria matar e crucificar todos os rebeldes, e esses retornaram então para Medina.

O estágio inicial do cerco à casa de Uthman não foi muito forte, mas, com o passar dos dias, os rebeldes intensificaram a pressão contra Uthman. Com a ida dos peregrinos de Medina para Meca, a posição rebelde foi fortalecida ainda mais e, como conseqüência, a crise se aprofundou. Os portões da casa de Uthman foram fechados e guardados pelo renomado guerreiro Abdullah ibn al-Zubayr, junto com os filhos de Ali, Hassan e Hussein.

Em 17 de junho de 656, encontrando o portão da casa de Uthman fortemente guardado por seus partidários, os rebeldes escalaram a parede posterior e se esgueiraram para dentro, sem o conhecimento dos guardas do portão. Os rebeldes entraram em seu quarto e desferiram golpes em sua cabeça. Na'ila, esposa de Uthman, se jogou sobre o corpo dele para protegê-lo e ergueu a mão para desviar uma espada. Ela teve os dedos decepados e foi colocada de lado. O próximo golpe matou Uthman. Alguns dos servos de Uthman contra-atacaram, mas já era tarde. Uthman morreu, porém a turbulência causada no estado estava longe de acabar.


Referencial Bibliográfico e Notas:

[1] HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Pág. 244 a 249.

[2] AMILI, Sadruddin Sharafuddin al-. Ammar ibn Yasir (ra): A Companion of the Prophet. Books on Islam and Muslims, 2014. Pág. 49.

[3] MOOSA, Matti. Extremist Shiites: The Ghulat Sects. Siracusa: Syracuse Universite Press. 1988. Pág. 255 a 266.

[4] AS-SALLABI, Ali Muhammad. The Biography of Uthman Ibn Affan: Dhun-Noorayn. Riade: Darussalam. 2010. Pág. 475.

[5] HASHIMI, Sa'di al-. Abd Allah ibn Saba: Fact not Fiction. Mahajjah. 2015. Pág. 31.

[6] Idem 4, pág. 531.




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