UMA ANÁLISE DA SÉRIE “ERA UMA VEZ NO CHIPRE”

UMA ANÁLISE DA SÉRIE “ERA UMA VEZ NO CHIPRE”

Por: Rafael "Hussein" Silva

Recentemente comecei a ver a série “Bir Zamanlar Kibris” (Era Uma Vez no Chipre, 2021–2022 [1]), série essa que conta a história da Guerra Civil Cipriota (1963–1974) e da Invasão Turca da Ilha (1974), e hoje vim aqui trazer uma análise da história por trás da série, bem como falar sobre os personagens reais e comentar sobre a mesma. A série em si não é uma série islâmica, como outras que comentamos aqui como Kurulus Osman e Alparslan Buyuk Seljuklu, pois se passa numa época que tanto a Turquia como o Chipre eram estados laicos, e seus povos estavam bem mais ocidentalizados, porém é uma série essencial para se compreender sobre a divisão da ilha e a formação futura do Chipre do Norte em 1984.

Antes de falarmos sobre a história em si por trás da série, devo dizer para quem pensa em ver a série, que essa é a série turca mais violenta que já vi, mostrando diretamente os massacres perpetrados pelo grupo terrorista EOKA contra civis turco-cipriotas desarmados, valas comuns rasas feitas pelos greco-cipriotas para enterrar os turcos-cipriotas, assim como também mostra as marchas que vários refugiados fizeram para o norte a fim de se protegerem mostrando as mortes pelo caminho, etc, mostrando a brutalidade que foi a época.


O Contexto Histórico:


Em 16 de Agosto de 1960 era assinado o Tratado de Garantia, e com ele o Chipre ganhava sua independência após 46 anos de colonização britânica direta. Mas havia uma questão chave após a independência, como conciliar os dois povos que existiam na ilha, gregos e turcos, que tinham visões políticas diferentes? Os gregos sempre foram a maioria, estavam ali desde a antiguidade, porém devido a proximidade com a Turquia, após a conquista otomana da ilha em 1571, vários turcos começaram a migrar para a ilha, formando ali uma comunidade muito significativa, tal como aconteceria em outras ilhas gregas, como Creta, e Rodes.

Entre os anos de 1877 e 1878 o Império Otomano lutou uma dura guerra contra a Rússia, que os venceu e tomou partes de seu território. Nessa guerra os britânicos ficaram do lado dos turcos, e quando a guerra terminou, o sultão otomano deu a administração do Chipre para os mesmos, para que os britânicos pudessem proteger o Mediterrâneo de qualquer ameaça russa. Assim entre 1878 e 1914 a ilha era um território otomano de jure, porém de fato era administrada e controlada pelos britânicos. Como a partir de 1890 os otomanos começam a se aproximar mais dos alemães, inimigos dos britânicos, e em 1914 declaram guerra a Inglaterra para apoiar seu aliados alemães, foi a desculpa que precisavam para que os ingleses invadissem a ilha do Chipre e tomassem posse da mesma, a transformando em uma colônia.

A partir de 1915, devido a ajuda que a Grécia estava dando aos ingleses na I Guerra Mundial, os britânicos ofereceram a Grécia para que eles ajudassem na administração da ilha, e por cerca de 10 anos a comunidade grega da ilha começa a compartilhar cada vez mais da enosis, uma idéia que já vinha sendo construída desde a independência da Grécia em 1821 que pregava a união de todas as ilhas gregas, incluso o Chipre, sob um mesmo país, porém em 1925, sob protestos da Grécia, o Império Britânico anexa formalmente a ilha a fazendo uma colônia e frustando os planos para a enosis. No final de outubro de 1931, após a imposição de leis mais repressivas por parte do governo britânico na ilha nos anos anteriores, cerca de 5 mil estudantes se manifestaram em Nicósia pedindo a enosis, porém a manifestação foi dispersa pela polícia. Essa manifestação acabou mais atrapalhando a causa da enosis da ilha do que ajudando, pois o governo britânico do Chipre acabou com os conselhos legislativos e passou a nomear os governantes das vilas e cidades, e proibiu qualquer manifestação em favor da enosis ou mesmo bandeiras e cartazes da mesma serem postos nas ruas e locais públicos.

Em 18 de setembro de 1950 foi eleito como Patriarca da Igreja Ortodoxa do Chipre o arcebispo Makarios III (1913–1977), que era um fervoroso adepto da enosis. Após a II Guerra Mundial (1939 – 1945) e o governo autocrático de Sir Richmon Palmer (1877–1958) entre 1933 e 1939, as leis contra a propagação da enosis se afrouxaram, e com isso grupos em favor da mesma começaram a surgir. Então em 1955 foi estabelecido a Organização Nacional de Combatentes Cipriotas (EOKA), um grupo nacionalista e a favor da enosis. O líder desse grupo era um oficial cipriota que havia combatido na II Guerra chamado Georgios Grivas (1897–1974), e no início o principal rival do grupo era o Partido Progressista do Povo Trabalhador (AKEL) de orientação comunista e que apoiava a independência através de atos de desobediência civil inspirados por Mahatma Ghandi.

A EOKA começou uma guerrilha e atos de violência e sabotagem tanto contra o AKEL como contra o governo britânico, que tentava repreender os atos a força. O objetivo de Grivas era mostrar que o governo britânico não conseguia controlar os problemas da ilha. Nessa época também a Turquia começou a dizer que não aceitaria a independência cipriota, e se os britânicos deixassem a ilha, ela voltaria para mãos turcas. Nesse período também é claro que Makarios III compartilhava das idéias do grupo EOKA, mas não se sabe o grau de envolvimento entre eles, pois o patriarca negava qualquer envolvimento apesar de fontes da época dizerem que Makarios e Grivas se conheciam (e esse envolvimento é retratado na série).

John Harding, que era o governador britânico da ilha naquele momento, tentou negociar com Makarios para que ele não se envolvesse, porém o mesmo continuou a pregar a enosis. Assim Makarios foi preso em 1956 e exilado nas Ilhas Seychelles, e nessa mesma época a comunidade turco-cipriota começou a pregar a idéia do Taksim (Partição), que buscava repartir a ilha em 2, um território grego e outro turco, como uma forma de se contrapor a enosis. Os turco-cipriotas sentiam que, num governo grego da ilha, eles seriam perseguidos e não teriam segurança, e então a disputa polarizou as duas comunidades.

Em 1957 Makarios foi liberado do exílio mas proibido de voltar ao Chipre, e então ele foi para a Grécia, porém nessa época a própria Grécia já estava abandonando a enosis a fim de promover a independência do Chipre. Em 1959 Makarios foi para Londres onde se encontrou com o líder turco-cipriota Fazil Küçük (1906–1984) para entrarem em um acordo. Küçük entrou para a política em 1937, quando começou a defender os interesses dos turcos da ilha, e em 1941 fundou o jornal Halkın Sesi (A Voz do Povo) e passou a ser o editor-chefe. O jornal durou só um ano, ao ser fechado pelos britânicos devido as pregações contra o governo. Em Londres em 1959, Küçük lutou para garantir proteção e direitos a seu povo, e os britânicos forçaram a desistência da idéia da enosis e do taksim para apoiar uma constituição que daria poderes aos dois grupos, tanto que ao se firmar o Tratado de Garantia em 16 de Agosto de 1960, Makarios foi colocado como presidente e Küçük como vice-presidente da República do Chipre, agora independente.

Inicialmente Makarios governou de forma moderada, tanto que em 1961 foi aceito na Comunidade Britânica de Nações (Commonwealth). Porém em 1963, apoiado pela EOKA, Makarios começou a tentar modificar a constituição, para dar mais poderes aos gregos, e a EOKA começou a atentar e massacrar os turcos da ilha em dezembro de 1963 (a série começa nesse ponto), numa tentativa de faze-los migrar para o norte e até fugir da ilha. Porém a EOKA encontra a resistência armada do grupo Organização de Resistência Turca (TMT), e de seu líder, Rauf Denktaş (1924–2012). O grupo TMT havia sido formado em 1958 como forma de difundir o taksim, porém acaba assumindo na década de 1960 uma posição de defesa militar contra as ações do governo cipriota.

Diante muitas dificuldades, Makarios retrocedeu, e aceitou a eleição de Denktaş como vice-presidente da República do Chipre em fevereiro de 1973, porém a EOKA e os militares da ilha viram isso como fraqueza de Makarios, e em 15 de julho de 1974 o derrubaram do poder num golpe militar e colocaram como presidente um membro da EOKA, Nikos Sampson (1935–2001), que atuou como um ditador. Makarios se refugiou em Londres. Com isso a perseguição contra os turcos da ilha continuou, o que levou ao exército turco a intervir na ilha cinco dias depois, em 20 de julho de 1974, o forçando a renunciar. Com apoio do exército turco, os turco-cipriotas formaram no norte da ilha em 1975 o Estado Federado Turco do Chipre, que em 1985 mudaria seu nome para República Turca do Chipre do Norte, e Denktaş serviu como presidente de ambos os estados de 1975 a 2005, sendo sucedido por Mehmet Ali Talat, que governou até 2010, depois veio Derviş Eroğlu a governar até 2015, depois Mustafa Akıncı, que governou até 2020, e o atual presidente é Ersin Tatar. Na República do Chipre, Makarios voltou ao poder ainda em 1974, em dezembro, e ficou até sua morte em agosto de 1977, sendo impotente frente ao avanço turco na ilha e a formação do estado turco-cipriota.

Na próxima parte falaremos sobre os personagens reais que aparecem na história, e sobre suas vidas.


NOTAS E FONTES:


[1] Em tradução livre. A série não foi traduzida para o português oficialmente, logo usei uma tradução a partir do inglês.

FRENCH, David. Fighting EOKA: The British Counter-Insurgensy Campaign on Cyprus, 1955 – 1959. Oxford University Press, 2015.

HAKKI, Murat. The Cyprus Issue: A Documentary History, 1878 – 2007. Bloomsbury, 2007.

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