ACENSÃO E QUEDA DO MUTAZILISMO

Por: Firas Al-Khateeb

O surgimento da conquista intelectual muçulmana que começou em meados do século VIII foi parcialmente um subproduto de um esforço de tradução massiva [de livros antigos] realizado pelo enorme império muçulmano. As obras do grego antigo, latino, persa e sânscrito foram traduzidas para o árabe, principalmente no Bayt al-Hikimah [Casa de Sabedoria, uma espécie de Universidade] em Bagdá. Enquanto grande parte da tradução estava no campo das ciências empíricas, algumas delas tinham a ver com as idéias filosóficas [comuns] no antigo mundo grego. As obras de Sócrates, Aristóteles e Platão foram traduzidas [para o árabe]. O resultado disso foi o desenvolvimento de uma escola de teologia baseada na razão e pensamento racional, conhecida como Mu'tazila.

Origens do Mu'tazilismo

O Mu'tazilismo foi um movimento teológico muito amplo e dinâmico, e, portanto, é difícil identificar exatamente onde e como começou. O que é claro, no entanto, foi o impacto do raciocínio filosófico grego antigo sobre o movimento. Uma disputa primordial do [pensamento] Mu'tazila foi que o racionalismo pode ser usado para entender não apenas o mundo físico, mas também a natureza de Deus e a criação.

O Mu'tazila adaptou o raciocínio filosófico grego e tentou compreendê-lo em um contexto islâmico. Para eles, o Alcorão e a Sunnah não eram necessariamente as únicas fontes de verdade. Como os gregos, eles elevaram o papel da razão na compreensão do mundo para ser igual, ou em alguns casos, superior à revelação. Usando o racionalismo e a razão (chamado aqui de kalam), os Mu'tazila's chegaram a conclusões em relação a Deus que a maioria dos outros estudiosos considerou estar fora da crença muçulmana dominante.

A crença Mu'tazili foi resumida pelos seus seguidores em cinco princípios:

- Unidade: O conceito básico que os Mu'tazila's organizaram ao seu redor era o Tawhid, a Unicidade de Deus. Embora este seja um conceito que todos os muçulmanos aceitem, os Mu'tazila's levaram um passo além do que a maioria, insistindo que os atributos de Deus (como exemplificado por seus nomes no Alcorão, como Al-Raḥman, a Fonte da Misericórdia) Não deve ser considerado parte do próprio Deus. Com base em seus raciocínios, eles acreditavam que a essência de Deus não deveria estar associada aos nomes e atributos d'Ele, por medo de cair em uma forma de politeísmo como os cristãos fizeram através do conceito da Trindade.

- Justiça: como os gregos antigos, os Mu'tazila's acreditavam na livre vontade absoluta. Na sua opinião, Deus não predetermina a vida dos seres humanos, mas sim que eles tomam decisões inteiramente independentes do que Deus deseja. Como resultado, eles acreditavam que os seres humanos estão ligados a um destino no Dia do Juízo que é inteiramente determinado pela justiça divina (3'adl). Os Mu'tazila's diziam que qualquer faḍl (misericórdia) exercida por Deus era uma violação da justiça e incompatível com Sua natureza.

- A Promessa e a Ameaça: um subproduto do terceiro ponto, os Mu'tazila's acreditava em Al-wa'd wa al-wa'id, uma crença de que Deus está vinculado por uma obrigação de exercer a justiça absoluta.

- A Posição Intermediária: Os Mu'tazila's acreditavam que qualquer muçulmano que morresse depois de cometer um pecado grave, mas antes de se arrepender, não devia ser considerado nem um crente nem um incrédulo. Eles alegavam que essa pessoa estava numa "posição intermediária" que seria julgada separadamente por Deus.

- Comandar o bem e proibir o mal: esta é uma crença primária no Islã, tirada diretamente dos provérbios e ações do Profeta Muḥammad (saws). Na sua interpretação, no entanto, a força pode ser usada para comandar o que eles consideram bom e proibir o mal, um conceito que conduziu diretamente a Miḥna.

A Mihna

Os Mu'tazila's ganharam um novo degrau no califado abássida durante o reinado do Califa Al-Ma'mun (governou entre 813-833). O fundador da Bayt al-Hikimah aceitou as crenças Mu'tazili's como verdade e as usou na sua posição como o homem mais poderoso do mundo muçulmano para impô-las. Numa inquisição conhecida como al-Miḥna (palavra árabe para "o teste"), Al-Ma'mun (e seus sucessores Al-Mu'tasim e Al-Wathiq) prenderam, torturaram e mataram estudiosos da teologia islâmica que não seguiram a posições governamentais oficiais sobre a crença Mu'tazili, especialmente a idéia de que o Alcorão não é a Palavra de Deus eterna e não criada.

Enquanto muitos estudiosos aceitaram o dogma oficial do governo, ou pelo menos ficaram em silêncio, o Imam Aḥmad Ibn Ḥanbal se recusou e foi torturado durante os reinados de Al-Ma'mun e seus sucessores por isso. Devido à sua insistência sobre a incriação do Alcorão e a supremacia da crença islâmica tradicional sobre o racionalismo grego, ele entrou em confronto com a posição oficial do governo abássida de que o Alcorão foi criado e que o homem tem livre arbitrío total.

O Miḥna foi extremamente impopular com o povo em geral. Os tumultos nas ruas de Bagdá ameaçaram o "domínio dos abássidas, e em 848, o Califa Al-Mutawakkil acabou com o Miḥna e liberou Aḥmad Ibn Ḥanbal da prisão. Mas o Miḥna já havia feito seus danos à causa Mu'tazili. Os métodos brutais utilizados por aqueles que estavam no poder, levaram ao inevitável declínio do Mu'tazilismo.

Alternativas Teológicas

A impopularidade do pensamento Mu'tazili entre a população em geral foi agravada pela oposição de abordagens mais ortodoxas em direção à teologia. Os Mu'tazila's acreditavam, afinal, que a razão suplantava a revelação, e muitas de suas conclusões teológicas resultantes contradizem diretamente a crença islâmica ortodoxa como afirmado no Alcorão. Vários estudiosos muçulmanos tentaram refutar o pensamento de Mu'tazili e reafirmar o papel do Alcorão e da Sunnah na base da crença islâmica.

A primeira abordagem foi a de Aḥmad Ibn Ḥanbal, que insistiu na crença islâmica tradicional, mas não era favorável que para provar isso usasse o kalam como acreditavam os Mu'tazila's. Esta maneira de entender a teologia tornou-se conhecida como abordagem Athari para a al-'Aqidah (crença). Os defensores da abordagem Athari resistiram ao mergulho em explicações racionais de Deus, livre arbítrio ou metafísica. Em vez disso, eles confiaram em uma compreensão literal do Alcorão e da Sunnah para orientar sua 'aqidah. Embora a abordagem Athari esteja firmemente dentro do domínio do islamismo tradicional, fez pouco para reverter a maré dos Mu'tazila's, que rejeitaram fundamentalmente a abordagem Athari como não intelectual e irracional.

Uma oposição mais direta e efetiva ao Mu'tazilismo veio das escolas Ash'ari e Maturidi de 'aqidah. Essas duas abordagens, fundadas por Abu Al-Ḥasan Al-Ash'ari (morreu em 936) e Abu Mansur Al-Maturidi (morreu em 944), aceitaram o uso do kalam, mas apenas para defender a crença islâmica tradicional, como afirmado no Alcorão. Ash'aris e Maturidis se recusaram a usar a razão para obter novas crenças que contradizem a revelação como os Mu'tazila's, e tentaram usar a mesma razão que o Mu'tazila defendiam contra eles. Al-Ash'ari e Al-Maturidi eram contemporâneos que, independentemente, chegaram a conclusões semelhantes em relação à razão, e assim fundaram suas duas escolas paralelas. Na maior parte, essas duas escolas são idênticas. Ambos aceitam os mesmos pontos ortodoxos sobre 'aqidah, e só diferem em questões menores que geralmente não passam de semântica.

Ao longo dos séculos X e XI, os estudiosos dessas duas escolas se tornaram mestres da filosofia, da lógica e do racionalismo. Eles conseguiram encontrar um equilíbrio entre a razão e a revelação da qual os Mu'tazila's não conseguiram, e formaram uma série de argumentos baseados na razão que refutou as principais crenças Mu'tazili, como a criação do Alcorão e a incapacidade de Deus de ter Misericórdia dos pecadores. Esses estudiosos argumentaram que os atributos de Deus não se separam dele, mas simplesmente não são mais do que características que ele se descreve. E que acreditar que não é uma forma de politeísmo, mas a crença islâmica ortodoxa como colocada pelo Alcorão e pela Sunnah. Ao usar a razão como os Mu'tazila's consideravam como a forma mais elevada de pensamento e realização humana, eles conseguiram ganhar conversos para uma compreensão mais tradicional de 'aqidah.

O maior estudioso da abordagem de kalam baseada na tradição foi o estudioso Ash'ari do século XI, Abu Ḥamid Al-Ghazali (morreu em 1111). Ele viu o mundo muçulmano como atormentado por numerosas teologias pouco ortodoxas, como o xiismo islâmico, propagado pelo Império Fatimída do Egito e os seguidores do Mu'tazilismo. Suas obras dependem do kalam para provar as crenças islâmicas tradicionais, enquanto invocam a espiritualidade para orientar o leigo para uma vida de servilidade para Deus. Seu trabalho mais profundo foi o Tahafut Al-Falasifah (A Incoerência dos Filósofos), no qual ele abordou todas as principais reivindicações teológicas de filósofos muçulmanos e Mu'tazila's e refutou-os usando seus próprios métodos.

O que é notável sobre a carreira de Al-Ghazali é que ele não lutou fisicamente contra seus opositores teológicos, mas efetivamente, os venceu através de seus escritos. O Mu'tazilismo não morreu completamente depois de Al-Ghazali, mas sua popularidade caiu precipitadamente. Fora do xiismo, que adotou alguns conceitos Mu'tazili, é difícil encontrar muito no caminho das obras Mu'tazili a partir do século XI.

A maior parte de Ahl al-Sunnah wal-Jama'ah (islamismo sunita) veio a aceitar as escolas Athari, Ash'ari e Maturidi como 'aqidah legítima. E enquanto o conhecimento do kalam e do discurso racional destinado a provar a ortodoxia islâmica não é considerado obrigatório por todos os muçulmanos no islamismo sunita, esse campo das ciências islâmicas tem sido utilizado ao longo da história para defender a ortodoxia. Nos últimos cem anos, a oposição ao uso do kalam se desenvolveu entre alguns muçulmanos que acreditam que é uma inovação ilegal e que não conseguem diferenciá-la do Mu'tazilismo. No entanto, ao longo da história islâmica, o uso de kalam para defender as crenças islâmicas, como transmitido no Alcorão e na Sunnah, foi quase universalmente aceito. Foi, de fato, a abordagem tradicional baseada no kalam dos Ash'aris e Maturidis que ajudou a levar a cabo a queda da abordagem pouco ortodoxa do Mu'tazilismo em direção à teologia, em primeiro lugar.

Bibliografia

Al-Ghazali, Abu Hamid, and Richard McCarthy (trans.). Deliverance from Error. Beirut: American University of Beirut, 1980.

Brown, Jonathan. Misquoting Muhammad: The Challenge and Choices of Interpreting the Prophet’s Legacy. London: Oneworld, 2014.

Yusuf, Hamza. The Creed of Imam Al-Tahawi. Zaytuna Institute, 2007.

Esse artigo é uma tradução do artigo em inglês encontrado no site:
http://lostislamichistory.com/mutazilism/

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