COMO O IRÃ SE TORNOU XIITA?

Por Rafael "Hussein" Silva
Historiador pela UNIPAM
Especializando em História Medieval pela UNIFAI

Em dias anteriores, a noite, devido a uma amiga, me deparei com um interessante texto chamado “Como o Irã se tornou Xiita‽” localizado no seguinte link:


Assim hoje, queria comentar algumas das várias questões levantadas pelo autor do mesmo, não que o mesmo esteja errado no que escreveu, mas cometeu alguns equívocos históricos no que tange a história da Pérsia medieval. Assim não há erros, apenas equívocos, ou seja, muito do que ele fala é claramente o correto, como descrições das leis safávidas, que posteriormente discutiremos.

Eu estou escrevendo um livro sobre esse assunto, onde cada uma das ideias levantadas aqui serão muito mais descritivas e abrangentes sobre o assunto. No livro pretendo descrever a história e evolução da teologia xiita, assim falando claramente de cada um desses fatos.

Para levantar as questões aqui, destaquei várias partes no texto do autor do site que gostaria de comentar, assim funcionará esses meus comentários sobre o texto, eu vou colocar um trecho do texto do site e depois abaixo discorrerei sobre o assunto. 

Pois bem, o primeiro equívoco, muito comum a literatura ocidental, e completamente compreensível é o fato da confusão dos termos Irã e Pérsia (que não é citado no texto, mas o autor por várias vezes chama a Pérsia de Irã). Por que digo isso‽ Durante as duas últimas dinastias persas, a de Qajar (1789 - 1925) e a Pahlavi (1925 - 1979) a Pérsia era somente o atual estado do Irã, logicamente o que causa a confusão. Porém durante quase toda a Idade Média, a Pérsia tinha territórios muito mais amplos, dominando lugares onde hoje são o Cazaquistão, Turcomenistão, Tajiquistão, Azerbaijão e Afeganistão, além de partes do Iraque, Síria e Turquia em alguns momentos da história (1). Praticamente todos esses países, mantém até os dias atuais, uma população sunita bem maior do que a população xiita, mostrando que, os sunitas, mesmo dentro da legislação safávida, tiveram formas de sobreviver e se desenvolver. Apenas o Azerbaijão é hoje um país de maioria xiita, porém a maioria dos xiitas do país, hoje, estão muito distantes da fé, devido ao país ser dirigido por um governo laico, diferente do Irã.

Um segundo equívoco, lembrese, equívoco, não erro, está na parte que o mesmo diz: “(...) A maioria dos pensadores e figuras sunitas (...), foram iranianos” (2o par). No caso, a maioria foi persa, não iraniana em si, como o caso de Bukhari, compilador de hadith, que nasceu onde hoje é o atual Usbequistão, na cidade de Bukhara (traduzido para o português como Buxara ou Bucara), que fazia parte da Pérsia. Ele citou alguns nomes de pessoas que eram árabes, não persas, como sendo persas, como Abu Hanifa e Dawod Al_Zahiri, que nasceram em Kufa, no atual Iraque, porém tais erros são compreensíveis, pois os mesmos viveram boa parte de suas vidas na Pérsia. 

No terceiro parágrafo o autor fala das comunidades xiitas e da suas liberdades durante os canatos mongóis no Irã (1256 - 1335). Uma das primeiras coisas que temos de entender, ao falar de xiismo no Irã, é que, desde a conquista árabe no século VII, árabes e persas nunca se entenderam, as menores fagulhas rapidamente se tornavam grandes incêndios. É difícil claramente explicar o por que disso, existem muitas teorias. Alguns afirmam que os persas não gostavam dos árabes pois eles derrubaram seu império milenar, outrora de Dário e Xerxes; outros afirmam que os persas invejavam os árabes por sua rápida ascensão, entre muitas outras teorias; porém é fato que, logo após o estabelecimento do califado Omíada (661 - 750), os persas foram afastados do poder e reprimidos pelos mesmos e devido a tal e seu passado místico com o zoroastrismo e religiões místicas mais locais, os persas foram aos poucos sincretizando suas crenças ao islamismo (2). Porém eles não estavam sozinhos nisso, muitos árabes das periferias do estado, também afastados do poder, se aproximavam dessas crenças místicas. Dentre vários desses árabes, o principal que se destacou foi Jafar Al_Sadeq (702 - 765). Jafar, descendente do Profeta Muhammad (saas) através do casamento de Hussein Ibn Ali (626 - 680) com a princesa persa Shahbanu, se aproximou das crenças místicas, mais propriamente dos Mutazilis (não podendo afirmar que era um, porém muito de suas tradições nota_se claramente influência da seita) (3). O fato do mesmo ser de ascendência de uma princesa persa, fez com que muitos persas se aproximassem dele, e com isso foram surgindo cada vez mais comunidades xiitas na Pérsia. Jafar é considerado o sexto Imam para os xiitas duodécimos, bem como professor de Abu Hanifa e Malik Ibn Annas. (Não pense aqui em misticismo aquela ideia de sufis girando, eram apenas interpretações mais aprofundadas com influência de outras religiões na teologia islâmica).

As comunidades xiitas na Pérsia começaram a aumentar pois os próprios Imam’s xiitas e suas famílias começaram a buscar refugio na Pérsia. Ali Al_Redha fugindo da perseguição do califa abássida Harum Al_Rashid e de seu sucessor Al_Mamun, foi para a região de Mashhad, onde foi enterrado; sua irmã Fátima Massuma foi enterrada na cidade de Qom. Muhammad Al_Jawad passou parte de sua vida na Pérsia, e assim os Imam’s xiitas foram se aproximando da Pérsia. Tudo isso mostra algo muito claro, e simples de se entender: A Pérsia tinha governo próprio, que não era xiita mas os toleravam e davam certa proteção assim aos mesmos, e as terras árabes tinham califados sunitas que davam certa proteção aos mesmos, assim é algo lógico de se pensar que muitos sunitas persas foram buscar proteção nos estados sunitas árabes, e muitos xiitas árabes foram buscar uma maior calma e proteção em terras persas, fortalecendo as comunidades xiitas no lugar. Um pouco diferente do que o autor do texto no site parece demonstrar, as comunidades xiitas na Pérsia central (atual Irã) eram maioria, e não minoria ou comunidades isoladas.      

No quarto parágrafo, o autor do texto usa uma expressão complicada, ao dizer “destruição da comunidade sunita do Irã”, pois até hoje há vários sunitas no Irã, quase todas as cidades que nasceram os estudiosos sunitas que ele cita no segundo parágrafo, continuam até hoje com maioria sunita, muitas delas são dominadas por povos turcomenos, que são praticamente todos sunitas (4). Durante a Dinastia Safávida (1501 - 1753) os sunitas não foram destruídos, foram reprimidos, torturados e muitos forçados a se converter (tal como aconteceu com os xiitas em terras turcas sunitas pelo Sultão Selim I na mesma época), porém isso não fez a população sunita desaparecer do Irã, ou mesmo ser destruída, apenas a diminuiu drasticamente, e acabou por afastá_los do poder até os dias atuais. Não estou justificando os crimes dos safávidas, ou mesmo defendendo_os, porém não é correto afirmar que a comunidade sunita iraniana desapareceu, ou mesmo incitar ao pensamento de que isso tenha acontecido. 

Tudo o que ele descreve a seguir sobre a ascensão dos safávidas, de suas origens até a chegada ao poder não há equívocos de acordo com a historiografia medieval e moderna (séc. XVI é parte da chamada História Moderna), só que é válido acrescentar que o “Sabb” não era o ato de jogar maldições aos companheiros do Profeta (saas) e sim o ato de aumentar o status dos primeiros Imam’s xiitas falando o que os primeiros califas e companheiros do Profeta (saas) fizeram de errado (5). 

No décimo nono parágrafo, muitos dos massacres citados pelo autor dos safávidas as ordens sufis sunitas eram apenas boatos e teorias, poucos sabem se realmente aconteceu. A destruição dos túmulos de lideranças sunitas realmente aconteceram pois foram claramente reportadas por fontes até mesmo dos safávidas. Por que digo isso‽ Na época, como mencionado pelo próprio autor, havia uma grande rixa entre o Império Turco Otomano, sunita, e a Dinastia Safávida, xiita. Assim muitas histórias chegavam muito exageradas em cada um dos dois lados, não só por fato de que os governos eram interessados em propaganda, mas histórias passadas via oral podem acontecer isso, de surgir exageros em questões de massacres. Não que os massacres não aconteceram de ambos os lados, porém os números eram muito inflacionados quando chegavam a muitos pontos distintos dos dois impérios, e eram registados assim. 

Para terminar, eu gostaria de dizer que, os safávidas não foram o exemplo mais puro de governo, os mesmos cometeram muitos erros, massacres de pessoas inocentes e outros, tentando institucionalizar o xiismo. Porém a dinastia Safávida foi importantíssima para o reavivamento da Pérsia, pois agora os xiitas podiam viver em aberto sua fé sem o uso da taqkyah (omissão religiosa), bem como fez com que a Pérsia voltasse ao seu status de grande império e rivalizar com as demais potências muçulmanas. Isso não anula, diminuem ou justifica seus erros, mas mostra o quão importante foi esse momento da história para seu povo.

BIBLIOGRAFIA:

2 - Revista Hispanista, Orígenes del Sufismo Islamico, por Amour Auoni, vol. XIV, n. 52.
3- The Shi'ite Religion: A History of Islam in Persia and Irak. Por Dwight M. Donaldson (1933).
4 - Documentário “The Sunnis in Iran”, da Press TV.
5 - Bagdade: Cidade de Paz, Cidade de Sangue. Por Justin Marozzi. Edição de 2016.

Comentários

  1. Pergunta: você ainda é xiita, Rafael?

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    1. Olá Sr. Cadastros. Não sou xiita, porém o blog tem compromisso histórico com a verdade.

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